quarta-feira, 17 de setembro de 2014

Paulo e João se tornaram cristãos? - uma conversa bem breve

Reproduzo uma breve conversa que tive há poucos dias com alguém que não conhecia. Conversas assim se revelam oportunas para organizar pensamentos dispersos e sugerir direcionamentos pontuais para futuras reflexões. Por isso, entendo que esta poderá ser útil a alguém, mesmo contendo colocações não tão precisas de minha parte. As pequenas edições que fiz foram supressões de nomes ou referências ao contexto da conversa, que não fariam sentido aqui. Indiquei-as por colchetes vazios. Acrescentei uma correção a mim mesmo por meio de um colchete com texto em um ponto. No mais, agradeço a Ana por permitir a reprodução de nossa prosa aqui.

Ana Cristina S. Bellot de Souza
[ ], você diz [ ] que o apóstolo João e também Paulo se tornaram cristãos. Na época em que eles viveram ainda não existia o Cristianismo, nem o Novo Testamento, como hoje. Você faz esta colocação por que eles aceitaram Jesus Cristo como o Messias? Ou por que esta ideia se tornou generalizada?

Cesar
Concordo plenamente com o [   ], Ana.

O fato é que enfatizamos [   ] que o cristianismo, como religião independente e definitivamente separada do judaísmo, não existia no século I. Essa ênfase deve fazer soar meio fora de lugar a expressão "tornar-se cristão". Eu entendo. Mas será mesmo preciso uma instituição específica identificada como "cristianismo" e um cânone novo, o Novo Testamento, para que alguém "se torne cristão"? Parece que não.

Veja que já em Atos 26:28, Agripa diz a Paulo: ἐν ὀλίγῳ με πείθεις Χριστιανὸν ποιῆσαι, isto é, "por pouco me convences a fazer-me cristão." Parece claro que Agripa está pensando no caso de aderir a um movimento messiânico específico, aquele que identifica Jesus de Nazaré com o khristós/Mashiakh, que é o único movimento difundido por Paulo.

Agora, um fato linguístico curiosíssimo é que a terminação de khristIANÓS não é propriamente o que se esperaria de um termo grego cunhado a partir de khristós. Soa mais como terminação latina. E é significativo que nas três ocorrências do termo no NT não se trata de um uso afirmativo por parte de cristãos, mas sim a partir da perspectiva dos de fora. Pode soar como tipo de acusação inclusive no uso de 1 Pedro 4:16. Isso dá o que pensar.

Com sua licença, [     ]. Só entrei na conversa pra trazer mais pimenta.

Abraço!

Ana
Pode participar, não tem problema. Na minha opinião, os apóstolos não se tornaram cristãos, esta ideia veio realmente de fora, os seguidores judeus de Jesus, como João, Paulo, etc nem pensavam nisto, pois o Messias era o cumprimento das profecias da Bíblia Hebraica, mas, hoje a maioria dos cristãos tem esta opinião.

Cesar
Entendo sua perspectiva, Ana. Você entende que eles não consideravam haver nenhuma ruptura com a fé de Israel ao aceitarem a Jesus como Cristo. Concordo. Eles sabiam ser esse um prolongamento esperado da fé anunciada por Moisés, os profetas e os escritos. Mas mesmo sendo esperado, há uma ruptura por causa da especificidade do evento Cristo. Essa ruptura fica clara na introdução da Carta aos Hebreus. Se há uma nova etapa, um novo tempo (ainda que esperado), e se alguns não o reconhecem, não haveria logo a percepção de que se forma um grupo dentro do grupo maior? Digo, mesmo Paulo e João reconhecendo-se como judeus para sempre, eles também não teriam reconhecido que faziam parte de um grupo messiânico específico (que não simplesmente esperava um messias, mas que reconhecia em Jesus o Messias)? E se já percebiam haver esse grupo específico, que envolvia judeus e também muitos gentios (lembremos que Paulo tem plena consciência de que a fé em Jesus Cristo está tomando volume entre gentios - fica claro isso em Romanos), não tenderiam a aceitar logo um nome específico? No livro de Atos é Caminho. Com o tempo, provavelmente, "cristãos". Ainda que vindo de fora o termo (creio que vem mesmo de fora), ele foi aceito bem depressa.
Mas, como disse, entendo e aprecio sua reflexão. E concordo que a visão de muitos cristãos, de uma "conversão" de Paulo ou João é equivocada. Eu diria sim que eles "se tornaram" cristãos (no sentido de que passaram a seguir e imitar Jesus como Cristo), mas não deixaram de ser judeus. Acho o termo "cristão" muito bonito, pois, se é mesmo um título atribuído de fora com fins de acusação, reflete a resiliência da Igreja em tempos difíceis.
Abraço!
Só para deixar claro: Entendo que a expressão usada pelo [         ] ("tornaram-se cristãos") é possível para falar de Paulo e João. Mas concordo com a Ana de que é uma expressão errada SE QUISERMOS ENTENDER O TERMO "CRISTÃOS" COM TODO O SIGNIFICADO QUE ELE CARREGA HOJE. Ou seja: eu digo que Paulo "tornou-se cristão" entendendo o significado de "cristão" para os dias de Paulo, quando o termo já existia. O perigo da anacronia é constante. Mas pra isso serve o diálogo, para deixar claro o sentido pretendido.

Agora, Ana, parece-me que os seguidores judeus de Jesus já pensavam nisso sim. Não que tenham decidido se rotular, mas porque o contexto polêmico em que se viam envolvidos estipulava rótulos. Ora, Pedro é seguidor judeu de Jesus e aceita ser chamado de cristão, conforme lemos em sua carta. Não acha? (1Pe 4:16)

Abraço!

Ana
Esta é uma discussão bem interessante. As duas opiniões têm base, mas coloco a questão: e se os judeus, em sua maioria aceitassem a Jesus como o Messias, será que eles se colocariam como cristãos? E em outra parte você usou uma palavra bem interessante, RÓTULO. Nós temos este costume de rotular pessoas, coisas, situações...mas percebo que a judaicidade dos apóstolos era bem forte. O Cristianismo como instituição começou bem mais tarde como nós sabemos. Acho que na época a palavra cristão era para mostrar que as pessoas eram seguidoras de Cristo e seus ensinamentos dentro de uma nova perspectiva, mas já existente no mundo que eles viviam. Você não acha que só houve esta ruptura porque a maioria dos judeus não aceitou Jesus, e como coloquei acima, e se eles tivessem aceito o Messias? Incógnita?!

Cesar
Ótimo, Ana. Acho que estamos pensando juntos, e isso é bom. Gostei muito do seu comentário.

"e se os judeus, em sua maioria aceitassem a Jesus como o Messias, será que eles se colocariam como cristãos?"

De fato, se a maioria esmagadora dos judeus aceitassem a Jesus como Messias, parece que não seria preciso agregar novo rótulo. Os nomes que identificam grupos específicos só existem por causa dos limites que existem entre tais grupos e os demais. Só havia "fariseus" porque eles eram diferentes dos "saduceus" e dos "essênios". Os seguidores de Jesus entram nessa dinâmica e formam um novo grupo, minoritário ao que parece, com algumas características próprias.

"Acho que na época a palavra cristão era para mostrar que as pessoas eram seguidoras de Cristo e seus ensinamentos dentro de uma nova perspectiva, mas já existente no mundo que eles viviam."

Precisamente isso! Algumas novas ênfases havia nas palavras de Jesus. Alguns ensinamentos se chocavam com os dos fariseus. Outros se chocavam bem contrariamente aos da comunidade de Qumran. Outros iam contra os saduceus. E, assim, desde o ministério de Jesus, alguns limites, algumas diferenças já se iam demarcando.

"mas percebo que a judaicidade dos apóstolos era bem forte"

Sim, certamente. A judaicidade de Jesus também era. O movimento Jesus=Cristo é um movimento específico no âmbito judaico, não fora dele (embora seja também PARA fora dele).

"Você não acha que só houve esta ruptura porque a maioria dos judeus não aceitou Jesus, e como coloquei acima, e se eles tivessem aceito o Messias? Incógnita?!"

Acho, como você parece achar, que não haveria ruptura entre grupos (mas sim a inauguração de uma nova fase da judaicidade, que teria que ser reinterpretada e relocalizada no mundo à luz desse fenômeno ultra-significativo que é a encarnação do Logos. (veja como o judaísmo teve que se reentender a partir de grandes eventos como o exílio babilônico, a destruição do Templo, a expulsão de Jerusalém e, mais recentemente, a Shoá/holocausto. O fenômeno Cristo/Messias pediria uma reestruturação gigantesca também, não? Afinal, ele não se coloca como Mestre ou Profeta somente, mas como "cordeiro de Deus que tira o pecado do mundo").

Mas, dando cordas à incógnita, conforme sua hipótese: os seguidores de Jesus teriam tido o mesmo ímpeto missionário que tiveram? o judaísmo rabínico existiria? a Mishnah teria sido escrita? e os Talmudim? (lembremos que Jesus ia contra a tradição oral dos fariseus!) Mais textos do judaísmo de língua grega teriam sido preservados?

Cada pergunta abre um universo de possibilidades instigantes.

Abraço!

Ana
Quero reforçar este último ponto: a 'reestruturação do judaísmo' a partir da vinda do Messias. Hoje, quando judeus aceitam Yeshua (Jesus) como o Messias, eles não estão fazendo isto? A maioria não se vê como cristãos, mas como judeus messiânicos. Estou certa? Entrando pela história, e analisando hoje, vemos que a criação do Cristianismo e seus dogmas, perdendo a perspectiva ou o olhar judaico não foi muito bom para o Cristianismo, pois quando dogmas são criados longe da base, cria-se fundamentos que nada tem a ver com a Palavra de Deus.
Quanto ao ímpeto missionário, penso que sim, quando analisamos que Jesus veio tanto para Israel como para a humanidade. Vemos isto na visão de Pedro, sobre alimentos impuros.
São tantas questões...

Cesar
Ana,

O judaísmo messiânico é pequeno demais para se falar em reestruturação do judaísmo (talvez somente em reinterpretação identitária dos adeptos judeus). Eu pensei em reestruturação a partir da sua hipótese de adesão majoritária dos judeus a Jesus como Messias. Outro ponto é que o judaísmo messiânico surge em meio a um judaísmo que tem séculos de tradição a separá-lo dos judaísmos existentes nos dias de Jesus ou Paulo. Poderíamos usar essa experiência como parâmetro de comparação? No tempo de Jesus os adeptos do Jesus=Cristo eram essênios, fariseus, samaritanos etc. Hoje o judaísmo de referência é o rabínico.

Outra coisa, como a minoria dos adeptos do judaísmo messiânico é de judeus de origem (dizem serem uns 20%), sendo a maioria de gentios, pode parecer, às vezes, mais uma reestruturação do cristianismo [ou melhor, também: reinterpretação identitária dos adeptos gentios].

Considere-se, também, que há diferenças entre diferentes grupos judaico-messiânicos. Há doutrinas diversas existentes entre eles. (E lembre-se que em âmbito judaico também as doutrinas surgem, evoluem e mudam. Vemos isso na Antiguidade. Às vezes há certo maniqueísmo que atribui o nefasto ao não-judeu e uma ideia de pureza ao judaico. A coisa é mais complicada do que parece.)

Bom, apresento esses pontos como constatações bem difundidas por aí, só para deixar a reflexão mais complexa, mas aí chegamos a uma questão ATUAL, sobre a qual, [      ], não posso emitir minha opinião pessoal ou debater.

Fico agradecido por essa conversa inteligente.

Muito prazer! Abraço!

Ana
Entendo, que todas as religiões têm pluralismo na sua maneira de viver. O tema dos judeus messiânicos é explosivo. Quando falei em reestruturação, é não deixar o judaísmo, mas a partir de aceitar Jesus como Messias, ter uma nova perspectiva dentro do judaísmo. Fiquei feliz em debater com você, [     ]
Um abraço!!!

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